“F**k the EU”

(Major-General Carlos Branco, in Jornal Económico, 21/04/2022)

A divisão no seio da União Europeia, provocada pela colisão de interesses internos, aumentará a sua dependência política, económica e militar dos EUA, tornando irrelevante qualquer projeto de autonomia estratégica europeia.


frase pertence a Vitória Nuland, Secretária de Estado Adjunta norte-americana, e foi proferida em 2014, no rescaldo do golpe de Estado na Ucrânia, por ela orquestrado e dirigido, durante uma conversa telefónica com o embaixador norte-americano em Kiev, na qual dava indicações sobre a composição do novo governo ucraniano. Falamos da mesma pessoa que disse “temos [EUA] de infligir uma derrota geoestratégica à Rússia na Ucrânia”.

Têm sido muitas as desconsiderações com que Washington tem brindado os seus aliados europeus. É conhecida a parceria estabelecida entre a NSA e os serviços de inteligência dinamarqueses para intercetarem telefonemas de altos dignitários de vários países europeus. Escândalos varridos para debaixo do tapete. Apesar da sobranceria e arrogância com que são tratados, os europeus têm-se mostrado complacentes e servis.

Washington sempre receou a possibilidade de a Europa se transformar num polo de poder geostratégico concorrente. Um receio infundado, uma vez que as divergências existentes no seio da Europa impossibilitam que isso alguma vez viesse a acontecer. Por a Alemanha ser o país com melhores condições para liderar esse projeto, tornou-se um alvo das atenções de Washington, que não ficou nada tranquila quando a Chanceler Angela Merkel, em 2017, referiu que “a Europa tinha de tomar o seu destino nas suas mãos.”

Inserido nestas considerações, junta-se a importância geopolítica do Nordstream 2. A imagem do obediente Chanceler Scholtz na conferência de imprensa conjunta, em Washington, com o Presidente Biden a dizer que o Nordstream 2 não ia avançar, é bem ilustrativa da relação de poder/subordinação mantida por Washington com os seus parceiros europeus.

Os desenvolvimentos iniciados na Ucrânia em 2014, que desembocaram na guerra iniciada a 24 de fevereiro de 2022, consequência da política de porta aberta da NATO, foram um resultado do cerco que os EUA pretendem montar à Rússia, utilizando a Ucrânia como base avançada. Apesar dos repetidos avisos sobre os perigos dessa estratégia e à mais do que previsível reação russa, os liberais intervencionistas, instalados no Departamento de Estado, desprezaram-nos, criando objetivamente as condições que nos conduziram à situação em que nos encontramos hoje.

Esse projeto, para além de fazer a Rússia ajoelhar-se, visa também minar as ambições de autonomia estratégica europeia, tendo como principal alvo a Alemanha, o país mais bem colocado para liderar esse projeto.

Com o aumento dos preços dos hidrocarbonetos, o modelo em que assenta o desenvolvimento económico alemão — energia russa barata que permitiu uma indústria alemã competitiva – poderá ter sido colocado em causa. O mesmo racional se aplica às restantes economias europeias, que perderão competitividade em benefício de economias situadas noutras latitudes.

Sem recursos minerais, a Europa fica agora privada de aceder a minerais chave (cobalto, paládio, níquel e alumínio) de que tanto necessita para o seu desenvolvimento. Em contrapartida, as empresas americanas poderão vir a beneficiar largamente com as sanções draconianas impostas à Rússia, nomeadamente aquelas no domínio energético e das matérias-primas.

Se a crise financeira de 2008 contribuiu seriamente para aumentar o fosso que separava os EUA da União Europeia (em 2008, a economia da UE era ligeiramente maior do que a norte-americana: $16,2 triliões para $14,7 triliões. Em 2020, a economia norte-americana cresceu para $20,9 triliões e a europeia desceu para $15,7 triliões. De uma relativa paridade em 2008, a economia norte-americana é agora um terço maior do que a europeia e inglesa juntas), a guerra na Ucrânia pode ter vindo aprofundar essa tendência, assim como o desequilíbrio existente entre as duas margens do Atlântico.

Há fortes indícios de que a posição da Europa na ordem internacional que emergirá desta guerra não melhorará. A inflação e a depressão económica que se avizinham alimentarão a contestação e a radicalização social de franjas das sociedades europeias, mantidas relativamente calmas pelo Estado social, cujas capacidades poderão ser insuficientes para responder aos novos desafios que terão de defrontar.

A divisão no seio da União Europeia, provocada pela colisão de interesses internos, aumentará a sua dependência política, económica e militar dos EUA, tornando irrelevante qualquer projeto de autonomia estratégica europeia. A ambição de um projeto europeu supranacional poderá ficar ferida de morte por estes desenvolvimentos.

Foi confrangedor assistir à ausência da UE durante a crise russo-ucraniana que antecedeu a guerra, divorciando-se de intervir sobre uma matéria decisiva para o seu futuro. Cabe, pois, refletir quem, no final, vai beneficiar política, económica e geoestrategicamente dos dramáticos acontecimentos em curso, cujo fim é ainda difícil de antever.


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8 pensamentos sobre ““F**k the EU”

  1. Se os EEUU são uma federação de estados com pouco maus do que 200 anos e são visiveis divergências entre estados imaginem uma união de países de tão diferentes gentes com religiões raizes e interesses muitas vezes antagónicos e com história, alguns, com mais de 1000 anos. O território da UE não se compara em extensão e riqueza aos EEUU, tudo isso justifica as diferenças de visão do mundo e do papel que cada sistema tem no mundo. A modernidade de um e a antiguidade do outro fazem diferença em termos de preconceitos de como ver os homens e abordar as duas sociedades.

  2. Já agora, a senhora Victoria Nuland que em 2014 disse «fuck the EU» é a mesma que agora trata do envio de armas para a Ucrânia e que tem andado embrulhada em declarações sobre os laboratórios de armas biológicas, aqueles que não existem mas não podem cair nas mãos dos russos!… Tem servido todos os presidentes desde 1993 e é conhecida como uma missionária muito aguerrida a espalhar os valores ocidentais em todo o mundo, como no Iraque. É assim a democracia nos EUA, os hóspedes da Casa Branca vão passando mas a gerência essa não muda.

    • Mais um bom texto deste autor, e também um bom comentário da sua parte com uma excelente observação sobre a “Victoria’s Secret” do Pentágono…
      A Europa “americanizada” e infestada de vassalos da NATO é uma tragédia que vamos (já estamos a) pagar caro! É triste ver tantos cegos/manipulados à nossa volta, e pior, tantos fanáticos/manipuladores.

      Sobre Bucha, o mesmo relatório (shrapnel encontrado nos corpos), mas duas narrativas completamente opostas consoante o servidor online está nos 13% do Ocidente, ou fora da “comunidade internacional”.

      THE GUARDIAN: este diz que os russos mataram enquanto se iam embora… Ou seja, num par de dias conquistaram aquelas posições, depois bombardearam-se a si próprios, a seguir gastaram munições já na retirada, mas ainda voltaram atrás para abrir as valas comuns, e ainda deixar corpos para serem filmados em zonas onde as casas estavam inteiras… #AcreditaQuemQuer

      https://www.theguardian.com/world/2022/apr/24/dozens-bucha-civilians-killed-flechettes-metal-darts-russian-artillery

      SOUTH FRONT: esta narrativa, diz que os Ucranianos bombardearam os russos pelas costas (confirmado), com munições que já tinham usado no Donbass (confirmado), depois andaram um par de dias em operações de limpeza e a colocar vídeos na net a dizer que estava tudo bem (confirmado), e no final dispuseram os corpos para filmar, sem que o estado de decomposição batesse certo com data da morte.

      https://southfront.org/bucha-investigation-contradicts-itself-confirms-afus-atrocities/

      Ou seja, ora há imagens de satélite do Pentágono (Maxar) a dizer que a 19-Março os corpos já estavam na tal posição na estrada (com casas não bombardeadas), ora agora o The Guardian afirma sem dúvida que foram mortos a 29-Março em intensos bombardeamentos. É só escolher a que dá mais jeito. Só muda um número… #FacePalm

      Por falar em Maxar, as tais “200 valas comuns” nos arredores de Mariupol, são na verdade campas individuais. A RT foi lá filmar de perto, viu muitas tabuletas com nome nos casos identificados, flores postas por familiares, e algumas covas individuais abertas mas ainda por usar…
      Uma canal assim, que vai aos locais filmar coisas, só podia estar censurado pelo regime que prendeu o jornalista/denunciante Assange e o quer extraditar para o gulag dos EUA localizado na parte invadida de Cuba.

      Voltanto a Bucha, agora imaginem se fosse uma investigação independente, em vez de uma investigação feita por uma das partes envolvidas. Mesmo assim, acho que já fizeram tanta ginástica, que apresentariam na mesma uma cambalhota qualquer.

      Afinal de contas, para esta gente, a Sérvia era uma regime genocida só com inocentes à sua volta, o Iraque tinha armas de destruição massiva, a invasão do Afeganistão foi em nome do feminismo (e nos anos 80/90 Bin Laden era um “herói” a liderar guerreiros Mujahidin nesse país), a Turquia ou nem passa nas notícias ou mata Curdos porque Assad é mau, e as crianças Palestinianas são terroristas bombardeadas em legítima defesa por Israel…

      Ah, e vamos comprar mais gás aos EUA em nome da paz, e mais petróleo à Arábia Saudita em nome da democracia, e ameaçar as ilhas Salomão em nome da liberdade… Pois só a Ucrânia, Geórgia, Suécia e Finlândia é que podem decidir com que exército se aliar.

      Um dia destes, hão de proibir livros que chamem Aliado à URSS, e garantir que EUA ganharam sozinhos contra os Nazi desde início (e Pearl Harbor foi só um filme), e ai de quem disser o contrário, pois será acusado de Putinismo, e pagar uma multa até 30 mil euros por usar a letra Z ou citar fontes censuradas no Ocidente (parece anedota, mas algo deste género já está em vigor na Áustria!).

      Mas não há que preocupar, o Musk (oligarca que paga 0% impostos, foi defensor do golpe de Estado fascista na Bolívia em 2019, porque a Tesla precisava do lítio privatizado, e autor da frase “nós (EUA) fazemos golpe/invasão onde nos apetecer”), já passou o cheque de 44 mil milhões para “garantir a liberdade de expressão” no Twitter, pois para ele foi inaceitável suspender a conta onde o racista Donald Trump espalhava ódio e mentiras…

      Ah, e o novo pacote de censura digital está aí na UE, para garantir os “valores europeus” e castigar quem publicar coisas que atentem contra os bons costumes e mostrem falta de respeitinho, tudo isso feito pelo lápis azul das próprias gigantes tecnológicas.

      TIREM-ME DESTA DISTOPIA!!!

  3. Para este aqui vai: estou farto de Iraques, Sírias, e outros lados… para justificar o que se passa agora Ucrânia. Livrem-me destes sacerdotes da violência, destes obcecados pela derrota do ocidente e EUA, destes fãs de Putin, dos que parecem pretender o alargamento da guerra à Europa, dos que pretendem que Putin e o seu regime tomem conta de Portugal, dos que, quais Pétains do colaboracionismo com Hitler, querem um colaboracionismo com o Kremlin, dos que, disfarçados de democratas, utilizam a liberdade de expressão para condicionarem totalitarismos da extrema-esquerda e de extrema-direita que Putin tem apoiado.

  4. Divisionistas que pretendem a destruição da U.E. para que o regime de Putin que tem como aliado o PCFR possa ter mais margem de manobra para os seus intentos expansionistas.

  5. Sim … a aristocracia europeia já foi e a alemanha reunificada é um perigo . Quando dividiram a europa em IALTA tinham em mente 2 guerras mundiais e depois do fim da jugoslávia , globalização com um MADE IN CHINA sem qualquer nexo ou controle e a informação global via internet criaram-se as condições para uma nova tempestade [ também acho que a europa só pode sair prejudicada ] e pior vai ficar na dependência das grandes empresas americanas … a TESLA pôs a mega factory em Berlim numa jogada de xadrez premonitória … a alemanha deixa de ser uma potência económica e vai ser controlada por holdings americanas e chinesas .

  6. Muito interessante este artigo do major General Carlos Branco! Tenho acompanhado os textos, intervenções e comentários televisivos que tem realizado nos últimos dois meses e que têm representado para mim, uma importante grelha de leitura nestes estranhos dois meses.

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